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sábado, 4 de julho de 2020

1.1 Um apelo pela alfabetização química

Havia dois jovens no elevador da estação de rádio quando entrei, depois de terminar uma gravação ao vivo. “Você é alguém?”, deixou escapar um deles. Enquanto eu ponderava uma resposta apropriada para essa questão profundamente filosófica, seu amigo disparou: “Sim, ele é o cara que fala de química no rádio”. Essa era a munição de que o filósofo precisava. “Ó, não, estamos presos no elevador com um cientista,” brincou, antes de oferecer voluntariamente a informação de que na escola havia  irado dois em química, e “mesmo assim colando”. Eu já ouvira isso antes. Depois de dar muitas conferências, tenho sido  bordado por pessoas que, de alguma maneira, sentem necessidade de desafogar suas mágoas e dizer-me, com alguma espécie de orgulho perverso, que dormiram durante a aula de ciências do ensino médio, ou que química fora o único curso em que fracassaram. Tais comentários são emocionalmente dolorosos para qualquer um que ensine ciências. Mas, pior que isso, eles deixam implícito que o ensino de ciências pobre e sem imaginação pode ser parcialmente responsável pelo aterrorizante grau de ignorância científica que permeia nossa sociedade. 

O analfabetismo científico não é assunto para brincadeiras. Certamente nos divertimos com respostas bobas de provas, sugerindo que Benjamin Franklin produziu eletricidade esfregando dois gatos um contra o outro, ou que podemos identificar o monóxido de carbono porque ele tem um “cheiro inodoro”. Mas a falta de familiaridade com os princípios científicos básicos pode causar medos infundados e abrir a porta para charlatães. Recentemente, ouvi de um cavalheiro que estava preocupado porque, se dormisse com um cobertor elétrico, ficaria “cheio de radioatividade”; de pessoas que haviam investido em uma empresa costa-riquenha que descobriu um processo para transformar a areia vulcânica da praia em ouro; e de uma senhora que se preocupava porque o dióxido de silício do seu adoçante artificial lhe causaria câncer de mama. As duas primeiras, eu espero, não precisam de nenhum comentário, mas a questão do dióxido de silício apresenta um caso interessante. O dióxido de silício é apenas areia. 

Aparentemente, a preocupada senhora confundira a palavra silício com silicone, que é o nome de um tipo de borracha sintética usada em implantes de seios. Apesar de alguns problemas terem sido causados por implantes de silicone, o câncer de mama não é um deles. Aqui, um par de suposições falsas levou a alguns medos muito reais, mas não realistas. Em primeiro lugar, por que o dióxido de silício está no adoçante artificial? Esses adoçantes são tão potentes que devemos usar muito pouca quantidade deles. Estão misturados com substâncias tais como areia para tornar as embalagens maiores eo manuseio mais fácil. Um pouco de dióxido de silício em nossa dieta não é certamente um problema, mas, para os desinformados, ele representa outro insulto ao corpo, uma “substância química impingida a nós”. Ó, sim, aquelas notórias substâncias químicas! Existe alguma palavra mais amplamente mal com preendida? Deixe-me dar mais alguns exemplos. [...] O absurdo químico chegou até as salas dos tribunais. 

No julgamento de uma briga de gangues da Califórnia, o promotor descreveu “uma situação muito parecida a quando o nitrogênio se encontra com a glicerina; era certo que ia haver uma explosão de violência”. Ele provavelmente baseava a afirmativa em alguma vaga noção de que a nitroglicerina é um explosivo potente, mas essa substância não é feita combinando nitrogênio e glicerina. Na verdade, a glicerina encontra-se com o nitrogênio todo o tempo e bem pacificamente: o próprio ar tem 80% de nitrogênio. De forma um pouco mais séria, não muito tem po atrás, equipes de limpeza, vestidas com trajes de descontaminação, desceram na pequena cidade [estadunidense] de Texarkana para lidar com uma emergência tóxica causada por um derramamento de mercúrio. O culpado não era alguma descuidada companhia química — mas a ignorância química.

Um casal de adolescentes havia encontrado um lote bde 20 kg de mercúrio puro em uma fábrica de luz néon abandonada e começou a divertir-se com a substância brilhante. Eles brincaram com ela, distribuíram um pouco para seus amigos, derramaram no chão de casa e da escola. Como resultado, oito casas tiveram de ser completamente esvaziadas e seis estudantes terminaram no hospital, onde puderam contemplar os perigos do mercúrio, riscos que deveriam ter aprendido nas aulas de química do ensino médio. 

Esse episódio do mercúrio é bastante assustador em termos daquilo que nos conta sobre a educação científica. Mais terrível ainda é a história do jovem Nathan Zohner, que ganhou o prêmio da Grande Feira de Ciências de Idaho: ele fez com que 43 entre 50 visitantes assinassem uma petição para banir o monóxido de di-hidrogênio, porque pode ser fatal se inalado, é um componente principal da chuva ácida e pode ser encontrado em tumores de pacientes terminais de câncer. Qual é essa horrível substância química? Água, claro (H2O). Você já deve ter adivinhado que este é um apelo por mais e melhor educação científica em todos os níveis. Temos problemas quando adolescentes. pesquisados revelam que consideram os cientistas nerds e fracassados”. Temos problemas quando uma revista aconselha seus leitores a tomar água frequentemente porque “um terço da água é oxigênio, e bebendo-a você permanecerá alerta”. Temos problemas quando é possível se formar no ensino médio sem jamais ter feito um curso completo de química, física ou biologia.

[...] Muitos de nossos estudantes se mostram criativos, pensantes e perceptivos quando guiados para ver a ciência como uma fascinante e aplicável busca, e não como uma compilação de conceitos e fórmulas irrelevantes e chatos. Existe uma inventividade lá fora para ser cultivada. Recentemente encontrei um estudante, em uma feira de ciências, que havia desenvolvido uma forma de pintar o assento da privada com uma substância química luminosa, para que pudesse ser facilmente localizada no escuro. Suspeito que ele não assinará petições para banir o monóxido de di-hidrogênio da Terra.

Fonte: schWArcZ, J. Barbies, bambolês e bolas de bilhar; 67 deliciosos
comentários sobre a fascinante química do dia a dia. rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2009.


Questões sobre a leitura Registre as respostas em seu caderno

11. Defina com suas palavras o que o autor chama de analfabetismo científico.
12. Identifique no texto frases que exemplificam o analfabetismo científico.
13. De que modo aqueles que o autor do texto chama de charlatães podem se aproveitar do analfabetismo científico?
14. Imagine um caso curioso ou engraçado que envolva o desconhecimento de fatos científicos e escreva um pequeno
texto.
15. Forme um grupo e discuta com seus colegas situações em que a educação científica é importante.
16. Elabore uma frase que explique de que maneira a educação científica pode auxiliar na qualidade de vida das
pessoas, na preservação do meio ambiente e nos avanços tecnológicos.
17. A charge acima se refere a um fenômeno que pode colocar em risco o planeta e o ser humano. Converse com seus colegas sobre o conhecimento científico que vocês têm a respeito desse fenômeno e das interferências humanas positivas e/ou negativas.


Fonte: Feltre, Ricardo, 1928–Química / Ricardo Feltre. — 7. ed. —São Paulo : Moderna, 2008.

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